terça-feira, 26 de junho de 2007

domingo, 10 de junho de 2007

Do Palavras Tortas

Fênix
(Com apresentação da própria Li)



Letra, de minha autoria, que ganhou o 3º lugar num festival de Ouro Preto, cantada por Jane Duboc, e um 1º lugar no festival de Juiz de Fora, cantada por Clarisse Grova, em 1982 (tô véia... tsk, tsk, tsk...)

Depois da fúria de um furacão
depois do fogo de uma paixão
ardente
qual lavas de um vulcão
entre os escombros
pode haver vida latente

Cuida da terra qual lavrador
rega com amor o seu coração
descrente
que ao sol da manhã
entre ruínas
germinará a semente

Grita se for preciso
tenta achar a saída
que a esperança perdida
vai renascer

Cuida da terra qual lavrador
rega com amor o seu coração
descrente
que ao sol da manhã
entre ruínas
germinará a semente...

quarta-feira, 2 de maio de 2007

'Viver é ter contrastes'



Certas noites

Certas noites eu navego
vou ao léu
ao encontro do céu
certas noites eu me entrego

Certas noites eu naufrago
bebo o breu
que pinta o céu
certas noites eu me afogo

Mas volto à tona,
volto à flor d'água
sou marinheira
de mil viagens
solto meu canto
volto sereia
deslumbro
encanto
fascino
seduzo
atraio
cativo
enredo
engano
desfaço
maltrato
tiro o compasso...



O chat caiu

Tua ligação cai em meio a um chat e eu fico desamparada, me sentindo abandonada, sozinha, descompensada. Amaldiçôo a Telerj, os pulse, os tones, fax, modems, Embratel e Graham Bell. Saio da conexão, te ligo. Ocupado!!! Ocupado!!! E sinto no meu peito um aperto, um mal parado... Vou à cozinha, abro um vinho e decido me embriagar! O que sobrou na garrafa, nem para um copo me dá. Penso, inteiramente desesperada: "Só tenho duas saídas: suicídio imediato ou nova conexão!!!" Como sempre fui dramática, tento a segunda opção! Volto pra minha telinha, que aos meus olhos nublados, tristonhos e desvairados tem forma de coração. A tela é um imenso Norton Desktop Coração!!! Pela enésima vez, batalho a conexão! Parece que consegui! Digito a senha, musiquinha multimídia! Ai meu Deus, mas que demora pro programa carregar!!! Um mero 486Dx4-100, com 16 mega ram é a coisa mais obsoleta de toda a Criação! Até mesmo um Pentium-Pro seria uma lesma lerda diante de tanta aflição! Enfim o programa carrega e, desesperadamente, o mouse trêmulo, procura os usuários on-line. Aflita e consternada, constato que você, nada, nem de leve passou por lá... Quase que desfalecendo, tomo a irreversível decisão de ir pra Pago-Pago, numa balsa de madeira, abrindo mão pra todo o sempre de toda e qualquer ligação com informática, luz elétrica, telefonia. Adeus tecnologia!!! Namorar? Somente aborígines! Que não sabem o que são nick-names ou IDs. Se comunicam usando somente atabaques, maracas, tambores, tantãs e as batidas de seus corações.

Eliane Stoducto - 1997


Foto Charles Ebbets.


Reformas

Fui arrancada do bem-bom do sono pelo blim-blom da campainha! Com os olhos enevoados olho o relógio: 6:45 hs da manhã. Envolta em brumas repletas de carneirinhos, faço um esforço super-humano, visto o roupão e vou ver quem é. Do outro lado da porta avisto o pedreiro e o pintor. Meus pêlos se eriçam de pavor! Me lembro da reforma que estou fazendo e meu humor vai parar na ponta do dedão do pé. Ai meu Deus, por que essa classe subalterna tem a mania de madrugar? Por que insistem em chamar as mulheres de madame? Por que olham com um olharzinho de deboche e desprezo para quem levanta após o meio-dia? Inveja! Só pode ser inveja! E luta de classes também! Afinal de contas eu passo as noites e madrugadas escrevendo, lendo, trabalhando, oras! E, durante o dia, ataco de administradora, contadora, arrumadeira, lavadeira, faxineira, compradora, 'boy', economista, socióloga, pedagoga etc., sem remuneração. Tenho dois filhos e não tenho empregada, oras! Nada dessa "mamata" de chegar em casa e ter quem faça comidinhas para mim! Marmitas prontas? Ahhhh, sonho dos deuses! Meus dias são cansativos e canhestros e eles ainda se atrevem a me pensar "madama"! Arrrrrrrrrrghhhhhhh! Armo um sorriso entre o contrafeito, simpático e culpado e dou bom dia aos "penetras". Certo, certo! Penetras a meu soldo, concordo, mas nem por isso menos penetras! Eles olham para mim e entreolham-se com sorrisinhos disfarçados, como se dizendo: "a orgia noturna deve ter sido boa..." — e eu, pobre de mim, que há dois meses ando em jejum sexual absoluto, pensando até em procurar uma abadia onde me sagrem monja, me aceitem e aos meus dois rebentos, sinto-me como uma loba da estepe, meus dentes internos arreganham-se, quase babo e penso: "é hoje!" O pintor começa a preparar-se: é alérgico, o cidadão. Consome baldes de leite entre uma pincelada e outra e sofre... Seu olhar, por detrás da máscara protetora é de Cocker Spaniel. Tenta me comover. Mas eu sou dura, José! Logo imagino que ele vai tentar reestruturar o orçamento feito previamente, em função de sua alergia e acerto!... Putz! O pedreiro é mais simpático e acessível mas, depois que percebo que a cada dia começa a chegar mais perfumado e até está usando a dentadura, desconfio! Toda cautela é pouca para uma mulher sozinha! Comento casual e maliciosamente: — "Ummm, seu José, o senhor está a cada dia mais perfumado, hein? Vai à alguma festa?" E ele enrubesce e gagueja... Ai, ai, ai — penso: — "Não é que eu tinha razão?" E arrasada de tanto sono, peço licença e vou tratar de dormir mais um pouco, de porta trancada. — "Qualquer coisa batam na porta que vou escrever mais um texto" — minto. Eles concordam e vou dormir mais umas horinhas, se nenhum imprevisto acontecer, se nenhum cano furar, se o azulejo não quebrar, se o epóxi não endurecer, enfim... se tudo correr de vento em popa... Entro em meu quarto escurinho, deito-me, fecho os olhos e sonho.... Sonho com o dia em que esta maldita reforma terminar e eu possa enfim ter o repouso que mereço e gosto sozinha! Absolutamente feliz e SOZINHA!!!

Publicado na CRÔNICA DO DIA, em 14.outubro.1999

Eliane Stoducto



Das idades, da paz e da tranqüilidade...

Outro dia uma pessoa de uma lista que freqüento comentou sobre os preparativos que tinha feito quando estava às vésperas de completar 30 anos e perguntou aos outros o que sentiram quando entraram nesta idade...

Não me preparei e nem senti nada especial quando fiz 30 anos. Para mim, completar 30 anos foi exatamente como fazer 25, 29 ou 34... A mesma coisa quando completei 40. Não sei por que, mas estas datas terrenas, essa obsessão cronológica começou a me dar um certo tédio desde quando, ansiosa por ter 18 anos, descobri que não havia de fato grandes diferenças... Apenas o número mudava.

Quase todos os meus amigos, desde os meus 20 anos, sempre foram muito mais velhos que eu... E eram pessoas brilhantes, intelectuais, jornalistas, músicos, enfim, pessoas que curiosamente eram muito mais "jovens", atuantes e participativas do que as de minha idade... Alguns deles, artistas, têm até hoje a platéia abarrotada por público jovem. "A idade que se tem é a que sentimos" e não a determinada por um calendário que um papa resolveu instituir, sabe-se lá para atender a interesses de quem...

E se o padrão de contagem fosse outro, hein? E se houvesse uma Babel e existissem diversos padrões de contagem cronológica, um para cada grupo social, raça, sexo, etc., que aliás, até muito pouco tempo atrás vigorava em relação às mulheres.

Na minha adolescência, década de 60, ouvia um cantor, o Miltinho, cantar a música "Mulher de trinta" assim:

"Você mulher, que já viveu
que já sofreu, não minta
Um triste adeus, nos olhos teus
a gente vê mulher de trinta..."
(??????????????)

Adeuss??? Aqui, ó! Felizmente esta canção entrou por um ouvido e saiu por outro... Se não estaria marcada a ferro e fogo "ad eternum"... :)))))

Hoje estou com 49 e, se sobreviver, daqui a pouco terei 50, quiçá 60? :) É evidente que algumas mudanças ocorreram em mim, não por causa da idade, mas pelo caminho percorrido e pela capacidade de aprendizado. Conheço pessoas que chegam aos 80 e continuam tão vazias, conformistas e mesquinhas quanto eram mais jovens.

Mas, minhas inquietações, perguntas, indignação e sede pela vida são tão ou maiores do que as da juventude! Quem tiver esta chama acesa não envelhecerá nunca. Não voltaria, nem por um segundo, às minhas idades anteriores! Me gosto mais e me sinto muito mais plena, consciente e generosa hoje do que já fui algum dia.

Descobri que a harmonia e uma certa felicidade estão do lado de dentro e não do lado de fora e que apenas nós possuímos a chave secreta, embora existam pessoas que se debatam pensando que outra pessoa possui sua chave e outras ainda que nem desconfiam que essa chave existe.

Descobri que meu maestro predileto, o Tom Jobim, estava equivocado ou carente quando escreveu "É impossível ser feliz sozinho..." É perfeitamente possível ser feliz sozinho, dependendo da capacidade de introspecção e de gostar de si mesmo de cada um.

Mas como no Universo nada está parado, ficar estática, numa posição de serenidade e harmonia é muito chato! Tanto que estou até pensando em arranjar uma paixão, daquelas terríveis e infernizantes, que tiram a serenidade, a paz e o prumo, pois não estou suportando tanta paz e equilíbrio! :)))

Viver é ter contrastes, sombra e sol, percorrer altos e baixos! Sempre! Que a paz esteja comigo além túmulo. Mas não agora!

Eliane Stoducto

domingo, 29 de abril de 2007

Insônia


Foto Margarida Delgado.

Outra noite de insônia... Aquilo já estava virando rotina. Ela levantou-se da cama e foi até o espelho do banheiro espremer uns cravos na base do nariz.
De repente parou, observou o contorno dos olhos e filosofou sobre a inexorabilidade do tempo e de sua relatividade. Quando presta-se atenção ao tempo e aguarda-se algo, cada minuto parece uma eternidade. Mas, quando distraímos, nos damos conta e às vezes já se passaram dez, vinte anos.
Ela encarou-se de novo no espelho e pensou em como tinha andado distraída. Ainda outro dia olhara-se no espelho e tinha vinte anos e, hoje, o rosto de uma mulher de quarenta a contemplava.
"_ Oi , estranha!"- arreganhou os dentes para a própria imagem, fazendo uma careta enlouquecida de louca furiosa e assustou-se.
Imediatamente transformou os esgares ensandecidos numa máscara calma e tranqüila. Deu um sorriso benigno para si mesma e pensou em como aquele sorriso era perfeito para um comercial de margarina ou de fraldas descartáveis... Só estava faltando o olhar canino: resignado, compreensivo e amoroso.
Pronto! Estava perfeito. "_ Que grande atriz o mundo está perdendo..."- pensou. Nem mesmo o mais experiente psiquiatra perceberia, por detrás daquele rosto bondoso, tranqüilo e forjadamente tolo, o leve brilho irônico e desequilibrado da louca do espelho.
Passou um tônico no nariz avermelhado e pensou que precisava dormir, ou então, no final do mês, estaria com umas oito ou nove rugas a mais e ela não estava disposta a assemelhar-se a um maracujá de gaveta aos quarenta.
Foi para o quarto e deitou-se. Apagou a luz e nada. Tornou a acender a luz e, embora já fosse terça-feira, resolveu dar uma olhadinha no intocado jornal de domingo, para chamar o sono.
As denúncias de mordomias e safardagens perpetradas pela classe dominante, em confronto com a foto de um velho aposentado, com o rosto ensangüentado, por participar de manifestação pelo reajuste de pensões, deixou-a consternada e triste.
Com os olhos marejados de lágrimas, pensou em como o poder era podre ( Podres Poderes, Caetano!) e em como transformava seres humanos em bestas ávidas e insensíveis.
"_ Preciso comprar alguma literatura sobre anarquismo"- pensou.
Pegou então o caderno de Economia e, imediatamente, lembrou-se da imoral taxa de juros, de quase 12%, cobrada pelo seu cartão de crédito e, de que se parcelasse o pagamento do abundante, fútil e supérfluo material escolar pedido pelo colégio das crianças, fatalmente entraria num buraco negro de dívidas impagáveis.
"_ Céus! Como vou descolar essa grana absurda!? Pior que tem também o IPTU e o resto das dívidas do Natal... "- e, imediatamente, pensou que precisava jogar na Loto ou na Sena, pois era urgente resolver esses problemas comezinhos.
Foi na gaveta, pegou alguns volantes de jogo e, olhando aquelas dezenas de números, sentiu-se inteiramente despreparada para marcar os números vencedores.
"_ Quem sabe um pouco de radiestesia não possa me ser útil?"- pensou.
Então, pegou o seu pêndulo de cristal como quem pega uma bóia salva-vidas.
Depois de mais de uma hora, o pêndulo indeciso, insistindo em apontar-lhe uma infinidade de números, ao invés dos desejados, sentiu que a claridade da manhã penetrava em seu quarto, pelas frestas da veneziana. Estava amanhecendo e suas pálpebras estavam ficando pesadas, pesadas...
"_ Amanhã garimpo os números"- disse para si mesma.
Colocou no gravador a fita de relaxamento, apagou a luz do abajur, colocou a máscara de dormir, deitou-se de bruços e adormeceu com a certeza de que aquela noite de insônia tinha-lhe deixado, pelo menos, uma ruga a mais na encadernação da sua vida.

Eliane Stoducto

Poemas

Quixotismo

Adaga cravada no peito

o sofrimento,
grotescamente,

cavalga à deriva
combatendo
tolamente
antigos
moinhos
de vento

profana

transgredir normas
combater titãs
pular as cercas
e seqüestrar
todas as maçãs


natal negro

minha
árvore de natal
ao tem presente
aqui tudo vai mal
com a tua ausência...


pensando, pensando...

o homem que acha
que pensa
que pensa
e não ouve
e não age
só pensa que pensa...


Foto Anne Brigman.

estrepulias

quem brinca
se estrepa
quem não brinca também
então brinquemos
e trepemos muito
meu bem

sexta-feira, 27 de abril de 2007

'Viver é urgente!'




Poemas

Vocação

Certos dias
embora eu me desfaça em pranto,
amanhece,
e os pássaros insistem em cantar
embora queira, insanamente, desaparecer,
a luz do sol insiste em penetrar
pela fresta do olho.
Então acordo , tomo um café,
acendo um cigarro
e sorrio...

Xeque-mate

Sua intolerância
levou ao xeque-mate.
Quem quer comer
não rosna, não late!


Urgência

Escrevo cartas que não mando,
mensagens que não envio
ai, meu Deus, mas que fastio
dessa falsa apatia
tropeçar nas mesmas pedras
trilhar os mesmos desvios
com tanta vida pulsante
me negar e procurar
o tédio das calmarias...
Logo eu que desvario
lato, uivo e enlouqueço
nas noites de lua cheia
eu, que sempre me arrepio
muito mais do que me aquieto
preciso arrancar as teias
daquela antiga guerreira
que habita dentro de mim.

Viver é urgente!



Você, a espada
eu, a taça,
recipiente,
copas

nos encaixamos,
mais que perfeitos,
nessas
trocas

Xerez

Um xerez numa garrafa poirenta
para aplacar a sede

um livro e uma canção só de silêncio
p'ra saciar a alma

um dengo, um cafuné, um arrepio
para acalmar o peito

um beijo apaixonado, bem molhado,
para calar a carne,
emudecer o fogo
e afogar o cio...

quinta-feira, 26 de abril de 2007

'Um bom dia'


Elliot Erwitt.

Poemas

Mar em trânsito
Para Maria Tereza

Para o mar Maria ia
Para o mar ia
Para o mar ia
Ao pisar a fina areia
Em hora de maré cheia
O mar ia até Maria
O mar ia até Maria
O mar ia
O mar ia

Maria
Mar em trânsito...

~~~~~~~~

Mira
para minha mãe


Mira confusa
insana
absurda

Baila sozinha
tão triste
abstrusa

O tempo abstrato
tragando
sua mira

25/09/2004

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Sabores

Você, ao me enganar,
me deixou
tão livre e solta,
que hoje não tem volta,
descobri
novos sabores...

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Sob a lua...

Sob a lua
eu reluzo
e flutuo...
Sob a lua
sou estrela
te ilumino
e aqueço
enlouqueço
e te amo...

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Taquicardia

Delírios de febre,
suor e arrepios,
me toma de assalto
uma taquicardia:
o pulso acelera
assim de repente,
me sinto doente...
Os olhos vidrados,
a boca silente.
Sutil calafrio,
qual sombra da morte,
percorre a espinha.
Na louca agonia
espasmos, tremores...
é a vida que parte?
São males? São dores?
Que nada...
São só ais de amores...

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Xadrez inútil

Jogar xadrez
beber na chávena
o chá da Índia
feito burguês

Fumar charutos
Jogar xadrez
comer rainhas
com avidez

E antever
e maquinar
a estratégia

Abstrair
e descartar
qualquer
tragédia

Ser rei total
e absoluto
mas só ganhar
na superfície
do tabuleiro

Ser jogador
e leviano
ser incapaz
de mergulhar.

Amar ligeiro
é não amar...



Ney Trait Fraser.

Um bom dia

Um bom dia pra morrer
é quando tudo está parado
não se ama, não se odeia
e tudo, aparentemente,
está tão calmo

Um bom dia pra morrer
é quando a saudade do que
não houve insiste, e então,
a gente fica triste

Um bom dia pra morrer
é quando o futuro
não mais nos instiga
com promessas obscenas
das coisas que nunca,
nunca, se conquista

É quando a vida, aos olhos,
se desbota, e o prazer
com as coisas que se tinha antes
já não brota

Um bom dia para morrer é hoje...

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Suicídio ou porre

A manhã tinha sido particularmente difícil e agora eu estava ali sentada, num banco do Largo do Machado, pensando no que iria fazer de minha vida. Só havia uma perspectiva possível sobre o que fazer no momento - ir para casa ver televisão... Meus pêlos se eriçaram e um calafrio perpassou pela coluna diante desta possibilidade... Meu cérebro começou a contorcer-se à procura de alternativas mais agradáveis. De todas as idéias executáveis no momento só restaram duas que possuíam algum atrativo: suicídio imediato ou andar dois quarteirões, até o Café e Bar Lamas e tomar um porre descomunal.
O suicídio apresentava certas vantagens pois eu sabia que no dia seguinte não iria ter que me defrontar com o assustador incômodo de uma horrenda ressaca... O Tonopan e o Ormigrein tinham acabado... Valium, depois que mandara meu analista - que tinha um tique nervoso no olho esquerdo - à merda, nem pensar... Suicídio ou porre? Porre ou suicídio? O que fazer?
Subitamente sons de buzinas enlouquecidas me arrancaram das profundezas do debate interno. Olhei a minha volta. Eram 18h30 e o congestionamento da Rua das Laranjeiras já atingira o Largo. Dois garotos andrajosos e despossuídos, que as pessoas politicamente incorretas denominavam de pivetes, arrancaram a bolsa de uma senhora e saíram correndo debaixo de gritos de "- Pega ladrão!".
Um outro despossuído e sem-teto, isto é, um mendigo andrajoso, deitado num canteiro grunhiu algo e escarrou próximo a mim. Senti algumas gotículas daquela excreção insalubre respingarem no meu pé, mas continuei imóvel, olhando fixamente para o lado oposto, como se estivesse muito preocupada com outra coisa que não fossem aqueles nojentos respingos de escarro no meu pé e, dramaticamente, decidi: SUICÍDIO! NOW!
Levantei-me e lancei um olhar em torno para ver se entre centenas de camelôs encontrava algum que vendesse algo que me ajudasse a levar a cabo minha inexorável decisão. Precisava de lâminas de barbear!
Não as tinha em casa pois há dois anos havia resolvido aderir à nova tendência da moda natural e deixara crescer livremente todos os pêlos do corpo. As axilas inclusive, o que me valera algumas gozações de amigos mais caretas, que passaram a me chamar de Baby, mas isso já é outra história. Minha urgência, no momento, era conseguir adquirir as tão preciosas lâminas para poder concretizar minha inabalável decisão.
Pesquisando com o olhar entre a centena de ambulantes, finalmente avistei um, que vendia as tais lâminas. Aproximei-me e pedi um pacotinho e, ao pegá-lo, - decepção! - descobri tratar-se de lâminas duplas, G2.
-Não tem gilete azul? - perguntei ao ambulante, que me olhou como se eu fosse um ET.
-Essas lâminas são ótimas, moça! Uma faz tchan, outra faz tchun!
-Você não tem lâminas inglesas?
Ele me olhou estranhamente e eu me apressei a pagar e sair rapidamente dali, guardando o inútil pacotinho na bolsa. Olhei em torno desesperançada. O tráfego tinha piorado e o som das buzinas misturava-se ao dos arrancos dos ônibus do ponto final. O ar estava irrespirável com a fumaça dos veículos... Nisto, senti atrás de mim, um leve toque no ombro.
-Pronto! - pensei, desolada - o mendigo ...
Fui virando lentamente o rosto por cima do ombro, imaginando o que me aguardaria agora....
-Zuca! - quase gritei, entre surpresa, aliviada e encantada.
Zuca tinha sido meu quase namorado na época da faculdade e, desde que voltara do exílio, não voltara a vê-lo.
- Que prazeeeeeeeeeeer! exclamamos mutuamente.
Abraços efusivos e calorosos, beijos de "bico" e decisão de comprarmos umas "cervas" no boteco mais próximo e irmos até lá em casa para botar o papo, com 8 anos de atraso, em dia.
As lâminas foram utilíssimas! Usadas para uma depilação completa, no cheiroso banho de espuma que tomei, enquanto Zuca botava as cervejas no congelador, escolhia uns discos, olhava o Parque Guinle e o topo do Palácio das Laranjeiras e se familiarizava com o terraço da minha pequena cobertura...



Publicado na CRÔNICA DO DIA , em 30.outubro.1998


quarta-feira, 25 de abril de 2007

'E choro, e uivo, e me debato.'

Poemas



Lava

Meu sangue borbulha
e ferve, é lava
que lava, escalda
e queima, me arde...

Meu sangue é lava,
excita, me inflama,
castiga e aflige,
me deixa em viva carne...


Lua Cheia

Nas madrugadas insones de verão,
montada em negro corcel, viajo rumo ao passado.
Deliro, ardo em febre. Me apunhalo.
Me afogo em frios suores e,
depois, choro pela vida desperdiçada
como o vinho entornado
nas mesas de tabernas ordinárias
e chopes não terminados, levados
por apressados garçons mercenários.
Choro por minha polidez medíocre e bem comportada,
pelo tolo acato às convenções institucionalizadas,
pelo horrível aprendizado de engolir sapos.
E choro e uivo e me debato.
Afinal, é lua cheia...

Madura Idade

Aquele olhar de antigamente,
surpreso e transparente,
transformou-se em oblíquo e cansado.
O riso que brotava tão freqüente, rareou.
Ficou em seu lugar apenas um esgar entediado...
As mãos que eram quase de criança
viraram as de mulher atarefada...
Os cabelos castanhos se cobriram
com alguns fios prateados...
A velha timidez se travestiu
e agora já mal dava pra notar...

Apenas, algumas vezes, era quebrada
aquela paz tão duramente conquistada:
só quando a garotinha prisioneira
insistia em protestar
e a senhora, rápida e rasteira,
tentava lhe estrangular!



Meio que...

Ando meio que drogada,
meio que apaixonada,
exalo nicotina e paixão.
Ando meio que bonita,
meio que aflita,
entre a taquicardia e o tesão.
Ando meio que contente,
meio que doente.
Pra ser feliz,
estou por um triz...
Ando meio que surtada,
meio que amada...
Ando meio que...
meio que...
sei não!

Oceano interior

Algas, plâncton, maresia
espelho de águas serenas
angras, pélagos, enseadas
sob uma pele morena

águas cálidas, tranqüilas
encobrindo turbilhões
profundezas insondáveis
reinos de treva abissal

grutas secretas, águas frias
correntezas e marés
lavando o lodo das mágoas
transformando o fel em sal...

OCO

teu pouco
amor
louco,
primeiro
foi como
um soco,
depois,
deixou-me
o peito
oco

Peso do nada

Sou formada por ausências
solitude, abstinências
que muitas vezes esmagam
os gritos do meu silêncio

Sou feita de mil querenças
anseios e transparências
que muitas vezes emergem
com a voragem de um tufão

Sou fruta verde-madura
um travo de fel-doçura
aguardente que se traga

igo cerzindo essa teia
segurando em minhas veias
todo o peso deste nada

Quase

Quase me perco
nas dúbias sendas
do teu enredo

quase me rendo
nas negras teias
desse tecido

quase me afundo
nas águas turvas
quase me embrenho
na selva escura

mas saio inteira
e com mais viço
escapo ilesa
desse feitiço...

Que noite...

Que noite essa minha
sem sonho, sem sono
sem lua, sem vinho
que noite essa minha...
ganindo, gemendo
latindo sozinh
ao ponto da agulha
cerzindo sem linha
que noite essa minha!





A dor vinis crescendo...
Eliane Stoducto


Não sei o que me atacou... Provavelmente ter ouvido a mp3 do Márcio Proença, meu velho parceiro, achada na web. Feliz o tempo? Ou então nostalgia da mais simples e honesta boemia. Quem sabe o excesso de reclusão que, geralmente, transo numa boa e até me dá prazer, se transformou? Ou então a memória da pele - e do fígado - de um uísque nostálgico?
Não sei... Sabe-se lá o quê... Mas a saudade de antigas boemias bateu... Saudade de uma época em que eu era dona do meu nariz em que podia sair e voltar com o dia alto... Ou não voltar. "uísque, dietil, dienpax..."

Pessoas boêmias e com inequívoca vocação para a solidão, com sentimentos ambíguos, duais, pertencentes ao sexo feminino, não deveriam ter filhos. Ou deveriam?
Que me desculpe o poetinha

"Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!"
Mas se não os temos
Como sabê-los? Como sabê-los?"

mas isto é muito bom para poetas diplomatas do sexo masculino com grana no bolso e mulheres. Mulheres em profusão. Dedicadas, apaixonadas e maternais para cuidar deles, dos filhos deles, trocar as fraldas e comprar e agendar bananas e legumes para a papinha, enquanto o poeta enxuga umazinha, toma uma caipirinha e come uma feijoada com gostosa farofinha. E sofre, e cogita, e filosofa. E pode dar-se ao luxo da ressaca. E internar-se quando a coisa toda empaca.

Não há poesia numa fralda de cocô palpável e olfatável esperando no tanque. Não há poesia no ensaboar em si, apenas nas palavras e no olho do poeta.
"foi, quem sabe, esse disco, esse risco de sombra em teus cílios, foi ou não, meu poema no chão, ou talvez, nossos filhos..."

Mas... tirante os filhos que aborrecem, adolescem, nos enlouquecem e controlam, tirando-nos a paz e o prumo e que, provavelmente, depois se vão para o quase nunca mais (quando, meu deus, quando???? que seja já!) sinto uma angústia prosaica.

Uma angústia de não poder ouvir mais meus vinis... tenho muitos vinis mas o raio do meu som só toca CDs. Toca três CDs e nenhum vinil! Vinis de amigos, vinis com dedicatórias, vinis com minhas letras, música de amigos...

Vinis que me transportam no tempo, nas pessoas, nos afetos, nas minhas milhões de facetas interiores, e que jazem nas prateleiras do teto... Daqueles, que nunca vão ter regravações em CDs porque são raros, desconhecidos, de amigos, vinis de colecionador.
Que lástima... Estou velha, arcaica, senil como o vinil dos nossos embalos de sábado e sexta-feira à noite...
O vinil que contava nossas histórias pessoais e passionais, com a faixa arranhada e gasta - quase furada - de tanto ouvir quando se chegava em casa de porre depois de ter perdido o suposto grande amor... Aquele, do qual conhecíamos os arranhões e cicatrizes, se foram... E hoje eu choro a perda dos velhos vinis com suas heranças, histórias e legados febris.


Publicado em Collectanea